O governo federal acelerou de março a maio de 2020, os primeiros meses da pandemia no país, o ritmo de publicação de atos na área de meio ambiente, segundo levantamento divulgado pela “Folha de S.Paulo” nesta quarta-feira (29). Os dados foram pesquisados pelo jornal e pelo Instituto Talanoa.
De março a maio, período em que o novo coronavírus começou a ser registrado no país e se alastrou pelos estados, o governo editou 195 atos na área ambiental. Em igual período de 2019, foram 16.
O levantamento levou em conta atos como portarias, decretos e instruções normativas, que são conhecidos como dispositivos infralegais. Não modificam a legislação, mas detalham ou regulamentam leis já existentes. Por isso, podem ser instituídos pelo Executivo e não passam pelo Congresso.
Na reunião interministerial do dia 22 de abril, que se tornou de conhecimento público um mês depois, por determinação judicial, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu aproveitar que o foco da imprensa estava na pandemia para o governo “passar a boiada” na desregulamentação da área ambiental.
“A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação”, disse Salles na ocasião. “Então para isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, completou.
Alguns dos atos identificados pelo levantamento divulgado pela “Folha” geraram polêmica e foram alvos de críticas de especialistas da área ambiental. Entre os exemplos estão:
Instrução normativa do Ministério do Meio Ambiente, do dia 25 de março, que prorrogou o prazo de 31 de março para 29 de junho de 2020 para que empresas e pessoas físicas apresentassem relatório de atividades poluidoras ou de utilização de recursos ambientais referente a 2019.
Despacho de Salles de 6 de abril. Buscou colocar em prática o parecer que indica que o Código Florestal deve ser aplicado na Mata Atlântica em vez da Lei da Mata Atlântica, específica para a proteção do bioma.
Ato de 28 de julho. Alterou a classificação de toxicidade de 47 agrotóxicos, considerando-os menos perigosos ou sem classificação.
De acordo com uma das responsáveis do levantamento divulgado pela “Folha”, Natalie Unterstell, o governo usou alguns dos atos infralegais para tentar alterar a legislação, o que ela classificou de preocupante.
“Nesse conjunto dos 195 atos, que são de diferentes ministérios, o que mais nos preocupou, o que mais nos chamou a atenção foi o uso de alguns atos como despachos, por exemplo, que são muito infralegais, são muito ordinários, para tentar alterar a legislação, para tentar alterar a forma como a sociedade entende e deve cumprir alguma lei”, afirmou Unterstell, que é diretora do projeto “Política por Inteiro”.
Ela afirmou ainda que análises sobre projetos do governo para o meio ambiente mostram uma desmobilização de políticas públicas voltadas para a preservação e um desmontes dos órgãos da área.
“A nossa análise aponta tanto pra uma desmobilização das políticas públicas ambientais, então com desmobilização de orçamento , baixa implementação, quanto também um desmonte realmente das instituições e isso é muito preocupante, porque nós temos décadas aí de trabalho tentando montar um sistema nacional de meio ambiente e uma política nacional de mudança do clima e nós estamos vendo toda essa conformação, todas essas compactuações feitas pela sociedade sendo perdidas”, explicou Unterestell.
Em uma entrevista pela internet nesta quarta, ao jornal “Diário de Pernambuco”, o vice-presidente Hamilton Mourão, que comanda o Conselho da Amazônia, disse que o governo está comprometido com a questão ambiental.
“Nós temos que cumprir a nossa parte perante a comunidade internacional e a sociedade brasileira, no intuito de deixar muito claro que estamos comprometidos com essa agenda”, afirmou.
Em nota, Salles disse que “não há como comparar o volume no início de governo, quando as equipes e projetos ainda estão começando, com o desempenho nos mesmos meses do segundo ano”.
Repercussão
Márcio Santilli, sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA): “A boiada do Salles está sub júdice! Destacam-se nela a aberração de querer revogar a Lei da Mata Atlântica por despacho e a inaceitável extinção da fiscalização da exportação de madeira nativa. Tudo isso com graves e irreversíveis danos ambientais, sociais e econômicos, inclusive à imagem do Brasil.”
André Guimarães, diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM): “Metade do desmatamento e do fogo registrado na Amazônia no ano passado aconteceu em terras públicas. Em vez de flexibilizar regras, precisamos intensificar a fiscalização para coibir os ilícitos e reforçar as áreas protegidas. Ninguém ganha com um clima de ‘liberou geral’ a não ser quem atua ao arrepio da lei, e mudar a regra para beneficiar esse grupo, que não é a maioria, é ruim para os negócios, para o ambiente e para a imagem do Brasil.”
Carlos Nobre, climatologista e membro do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP): “A linha adotada de flexibilização da legislação ambiental–um termo político para enfraquecimento–já vinha ocorrendo há vários anos de forma algo dissimulada. Desde 2019, tornou-se algo defendido ideologicamente e com lideranças do Ministério do Meio Ambiente publicamente defendendo um modelo ultrapassado de desenvolvimentismo a qualquer custo.”