Entre galhos e folhas esturricados sobre o solo que abrigava uma área de floresta intacta, o cheiro de queimada ainda é forte. Próximo a uma das aldeias da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, vazios surgiram onde grandes árvores da Amazônia dominavam.
“Depois que queima, tudo muda. Vai entrando um mato, uma capoeira… As árvores às vezes não queimam de uma vez, mas vão apodrecendo”, conta Awapu Uru-Eu-Wau-Wau à DW Brasil sobre a experiência de assistir à morte da mata nativa.
Além da paisagem arrasada, um outro efeito maligno e invisível perdura por décadas: a liberação de gás carbônico (CO2) para a atmosfera, o potente gás de efeito estufa acelerador das mudanças climáticas.
Uma pesquisa recente concluiu que, décadas após a passagem do fogo pela Amazônia, a lenta morte da vegetação segue como uma fonte significativa de CO2. Ao longo de um período de 30 anos, 73% das emissões das áreas de floresta analisadas resultaram da mortalidade e decomposição de árvores após incêndios, conclui o artigo científico assinado por brasileiros e britânicos publicado na IOPscience Environmental Research Letters.
“Tem aquela emissão que acontece na hora, que é o fogo que consome as folhas, os galhos, e que já vai direto para a atmosfera. Mas as árvores vão morrendo e continuam se decompondo, e continuam emitindo”, detalha Liana Anderson, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, Cemaden.
Os impactos indiretos não param por aí. Mesmo 30 anos após a passagem do fogo, a mata não recupera o seu antigo porte.
“A floresta fica mais ou menos com 25% menos de biomassa – menos madeira, menos material acumulado – do que uma área de uma floresta intacta”, complementa Anderson.
Persistência dos danos
Ao contrário do que se costumava pensar, a Floresta Amazônica, depois de atingida por um incêndio, não compensa através do crescimento de novas árvores as emissões de CO2 provenientes do fogo que a destruiu.
O grupo de pesquisa de Anderson, que tem estudado esse fenômeno, identificou que a regeneração natural da floresta após o desastre, mesmo 30 anos depois, compensa apenas 35% de todas as emissões de CO2 geradas pelo incêndio.
“Isso mostra a persistência do impacto. Há esse pensamento que diz que depois da queima, a floresta vai se recuperar em breve, que não precisa se preocupar com a emissão. Mas os estudos estão mostrando que a recuperação da floresta não ocorre, que fica sempre um déficit”, argumenta Anderson.
Na contagem oficial das emissões brasileiras de gases estufa, os incêndios em vegetação nativa, que matam a floresta em pé que normalmente não queimaria, ficam de fora. Por outro lado, o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), que calcula essa fonte em caráter experimental, estima que, em 2019, 517 milhões de toneladas de CO2 equivalente (CO2e) vieram dessa combustão, um aumento de 87% em relação a 2018.
As queimadas que seguem após o desmatamento da floresta são contabilizadas na categoria “mudanças de uso da terra”, e responderam por 44% do total das emissões nacionais, com 968 milhões de tCO2e – um aumento de 23% em relação a 2018.
Ane Alencar, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), reafirma que a ideia de que há uma recuperação natural após um incêndio não vale para a maior floresta tropical do mundo.
“A Amazônia é um bioma em que o fogo não faz parte naturalmente do processo evolutivo. Então, quando ocorre, ele causa danos e demora muito tempo para recuperar a biomassa que tinha. Isso pode ser pior quando a mata é queimada pela segunda vez”, detalha Alencar.
Além de toda a perda ambiental, existem ainda outros prejuízos consideráveis. “A fumaça da queimada vai virar problema respiratório nas pessoas. Há o empobrecimento da floresta, que afeta a biodiversidade, e as áreas usadas por populações tradicionais de extrativistas. Isso causa impacto direto nas pequenas economias, de pessoas que dependem diretamente da floresta”, lista Anderson.
Um levantamento feito pelo Ipam e outras entidades estimou que o fogo associado ao desmatamento foi responsável por 2.195 internações devido a doenças respiratórias em estados amazônicos em 2019. Desse total, 467 casos (21%) foram de bebês de 0 a 12 meses de idade e 1.080 (49%) foram de pessoas idosas, com 60 anos ou mais.
Em busca de soluções
Nos arredores da pequena propriedade de Raimundo Freires dos Santos, em São Félix do Xingu, no Pará, a fumaça diminuiu a partir de meados de novembro. O estado é o campeão em queimadas na temporada de agosto a outubro de 2020, com 29.793 focos, o que representa 40% do registrado em toda a Amazônia.
Mas Santos não quer saber do fogo. Ele cuida da mata que abriga os 10 mil pés de cacau orgânico que cultiva desde 1999. “Antes a gente desmatava, plantava, formava pastagem com intenção de botar rebanho”, conta sobre o próprio passado na cidade que tem o maior número de cabeças de gado do país e é uma das campeãs em desmatamento.
Ele participou um estudo do Imaflora que mostra como a agricultura familiar pode ajudar a remover da atmosfera gases do efeito estufa. O potencial é grande: 2 milhões de toneladas de CO2 equivalente ao ano podem ser absorvidas quando técnicas corretas são aplicadas.
Em áreas de pastagens degradadas, a adoção de sistema silvipastoril, que combina plantio de árvores e manejo adequado, reduz emissões e melhora as condições do solo. No caso do cacaueiro orgânico, o enriquecimento com árvores de sombra aumenta a fixação de carbono e a produtividade.
“Para cada unidade de animal manejada, as emissões foram 66% menores no sistema silvipastoril que no extensivo”, detalha Eduardo Trevisan, gerente de projetos do Imaflora.
Segundo o pesquisador, o foco do projeto é oferecer alternativas aos pequenos produtores dessa região que já foi tão desmatada. “São práticas que não só melhoram a questão da renda. A pecuária silvipastoril traz melhoria de produtividade. Além de melhorar a biodiversidade e o balanço de emissões”, resume.
Da agrofloresta da família de Santos saem de 3,5 toneladas a 4,5 toneladas de cacau por ano. “Era para ser 8 toneladas, mas a floresta também é dos bichos. Então a gente não mexe”, diz sobre os frutos que deixa de colher por serem consumidos pelos animais.
Sobre o resultado do estudo, que avaliou pequenos produtores participantes do programa Florestas de Valor, Santos deseja que iniciativas do tipo aumentem. “O resultado é positivo, mas é muito pouco pelo tamanho do desastre que acontece. Teria que ter uma evolução de pensamento, sei que não é fácil transformar uma coisa. Teria que ter participação do governo, mas ele não tá muito interessado. Por aqui, as ONGs fazem muito”, opina.