As possíveis consequências da Medida Provisória nº 1.046 à Segurança e à Saúde do Trabalho vêm sendo analisadas no meio prevencionista. Publicado no Diário Oficial da União de 28 de abril, o documento estabelece flexibilizações temporárias na legislação trabalhista que poderão ser adotadas pelos empregadores por até 120 dias em função do estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública decorrentes da pandemia da Covid-19. Embora de forma diferente, o documento aborda os mesmos temas da Medida Provisória nº 927, publicada em 22 de março de 2020 e que caducou em julho do mesmo ano.

O médico do Trabalho, advogado e perito judicial João Baptista Opitz Neto lembra que a MP 927/2020 gerou muita insegurança jurídica, uma vez que medidas provisórias podem ou não ser aprovadas pelo Congresso Nacional, bem como sofrer alterações em sua tramitação nas casas legislativas federais. “Isso dificulta um planejamento a longo prazo pelas empresas, que não sabem o que irá ocorrer daqui a alguns meses”, complementa. Ele ressalta que, nesse ponto, a MP 1.046 tem uma importante diferença: traz, no Artigo 1º, a vigência das medidas nela dispostas, 120 dias. “Justamente esse é o período de vigência de uma MP caso o Congresso não a aprecie. Ou seja, mesmo podendo ser prorrogada, as empresas devem se planejar para uma vigência de 120 dias dessas medidas”, destaca.

EXAMES

Quanto aos exames ocupacionais, o médico comenta que a MP 1.046 apresenta três regras distintas em sua redação, diferentemente do que havia na MP 927. Há um tratamento diferenciado quanto à necessidade de realização dos exames ocupacionais para trabalhadores em atividades não presenciais (teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho a distância), trabalhadores em atividades presenciais e trabalhadores relacionados às atividades de saúde (área de saúde e áreas auxiliares), esses últimos sem hipótese de suspensão dos exames.

“IMPORTANTE RESSALTARMOS QUE, DA MESMA FORMA QUE A MP 927, A REDAÇÃO DA MP 1.046 PERMITE AO MÉDICO COORDENADOR DO PCMSO INDICAR QUANDO ELE ENTENDE QUE A PRORROGAÇÃO DESSES PRAZOS, COM A NÃO REALIZAÇÃO DOS EXAMES OCUPACIONAIS, COLOCA EM RISCO A SAÚDE DO TRABALHADOR”.

Para Opitz, esse é o ponto central, pois os médicos terão que ter cuidado, uma vez que qualquer coisa que ocorra com o trabalhador e possa estar relacionado à não realização dos exames ocupacionais poderá ser atribuída a eles e, consequentemente, às empresas. “Como diz o ditado: ‘Grandes poderes trazem grandes responsabilidades’. Quando a MP dá essa prerrogativa ao coordenador do PCMSO, está indicando que cabe à empresa avaliar se essa prorrogação deve ou não ser feita”, alerta.

Opitz entende que, na prática, a suspensão dos exames nas duas hipóteses constantes da MP 1.046 deve ficar limitada a trabalhadores sem risco ocupacional específico, minimizando riscos futuros para as empresas. Para ele, postergar mais uma vez a realização dos exames ocupacionais é assumir um risco grande quando há atividades laborais que possuem riscos ocupacionais específicos. “Sabemos que a interpretação que será dada pela Justiça do Trabalho, à luz do Direito do Trabalho, é que a empresa deveria ter agido com precaução, não negligenciando a SST. O norte dessas questões sempre deve ser a maior proteção possível à saúde e à integridade física do trabalhador”, orienta.

Complementa que, não faz sentido, na atual fase da pandemia, deixar de fazer exames ocupacionais, com as devidas medidas sanitárias já conhecidas para a mitigação do risco de transmissão da Covid-19. “Em que a suspensão desses exames irá auxiliar ou minimizar a transmissão do vírus? Ao contrário, trabalhadores que não são acompanhados pelo médico do Trabalho poderão não ter identificadas condições de saúde que podem ser fundamentais na identificação dos grupos de risco e demais medidas necessárias”, afirma.

DEMISSIONAL

Avalia, ainda, que a dispensa do exame demissional caso o último exame periódico tenha sido feito há menos de 180 dias deve ser vista com parcimônia. “Estamos falando de seis meses sem qualquer avaliação do colaborador, mesmo para atividades de maior risco, empresas grau de risco 3 e 4. A ‘fotografia’ de como o trabalhador saiu da empresa é muito importante, principalmente em casos de ações trabalhistas. Muita coisa pode acontecer em seis meses e passar sem qualquer registro pela empresa, o que é temerário”, alerta.

Opitz ressalta que sempre é preciso lembrar que esses prazos são máximos, mas a empresa pode adotar prazos menores, visando uma maior proteção ao trabalhador. “Entendo que todas as empresas terão que consultar os departamentos médicos próprios ou terceirizados para saber qual a melhor conduta a ser adotada”, acrescenta.

BANCO DE HORAS

Quanto ao capítulo VI da MP 1.046, que trata do banco de horas, Opitz observa que busca regulamentar a possibilidade de um banco de horas “ao contrário”. “Geralmente, o banco de horas é constituído para a compensação de horas extras trabalhadas pelo colaborador. A leitura do caput do Artigo 15 trata da possibilidade da empresa interromper as atividades empresariais, constituindo banco de horas para compensação dessa interrupção. Ou seja, os trabalhadores teriam que compensar as horas não trabalhadas no futuro”, complementa.

No entanto, no seu parágrafo terceiro, possibilita que sejam feitos bancos de horas para atividades essenciais sem que exista necessidade de interrupção de suas atividades, “o que nos parece permitir à empresa determinar horas extras aos seus colaboradores e, posteriormente, compensá-las através de banco de horas”. Para Opitz, trata-se de uma medida prejudicial, principalmente aos trabalhadores da área da saúde, que estão exaustos e em seu limite físico e mental. “Não vejo a possibilidade de banco de horas dessa forma como uma medida adequada neste momento. Isso poderá trazer consequências à saúde dos trabalhadores e à qualidade dos serviços prestados pelos mesmos à população, algo fundamental na atual situação que vivemos”, acredita.

TREINAMENTOS

Quanto aos treinamentos, a MP 1.046 permite a suspensão dos treinamentos periódicos e eventuais dos atuais empregados, fixando o prazo para serem realizados posteriormente. Permite, ainda, a realização de treinamentos a distância.

“MAIS UMA VEZ, ESTÁ SUSPENSA A OBRIGATORIEDADE DOS TREINAMENTOS, NÃO ESTÁ PROIBIDA A REALIZAÇÃO DE TREINAMENTOS. ESSA É UMA DIFERENÇA IMPORTANTE. AS EMPRESAS PODEM CONTINUAR FAZENDO TREINAMENTOS. EM ALGUNS CASOS, ENTENDO QUE DEVEM, ADOTANDO MEDIDAS SANITÁRIAS PARA MITIGAR O RISCO DE TRANSMISSÃO DA COVID-19”.

E ele faz um questionamento: será que, na ausência de um treinamento com a ocorrência de um acidente de trabalho, a empresa não será responsabilizada e não arcará com o custo trabalhista, previdenciário e tributário? “Parece-me que o risco fica todo com a empresa, que, mais uma vez, deve avaliar o caso de forma individualizada. A suspensão de todos os treinamentos, indiscriminadamente, poderá deixar a empresa vulnerável. Não entendo como uma prática adequada. Se a atividade é de risco, em minha opinião, o treinamento deve ser mantido”, orienta. Ressalta, ainda, que a MP 1.046 discorre sobre suspensão para atuais empregados da empresa. “Isso significa que os treinamentos para a admissão dos trabalhadores continuam obrigatórios”, alerta.

CIPA

No que diz respeito à CIPA, o documento autoriza a realização de reuniões, inclusive aquelas destinadas a processos eleitorais, de maneira inteiramente remota, com a utilização de tecnologias da informação e comunicação. “O uso da tecnologia para treinamentos e reuniões da Comissão sequer deveria estar na Medida Provisória. Isso porque entendo que passou da hora dessas modalidades serem englobadas pela área de SST. Qual o problema de uma reunião da CIPA ser realizada de forma telepresencial? E os treinamentos? Incrível que, no Brasil, se permita ensino a distância para quase tudo, mas se crie tantas barreirar para o uso da tecnologia em treinamentos de SST ou reuniões de CIPA. Não faz sentido”, constata.

Prorrogação de jornada preocupa

Outro ponto da MP 1.046 que gera preocupação no meio prevencionista é o artigo 27 do Capítulo IX. Ele permite aos estabelecimentos de saúde, durante o prazo de 120 dias, inclusive para as atividades insalubres e para a jornada de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso: prorrogar a jornada de trabalho e adotar escalas de horas suplementares entre a 13ª e a 24ª hora do intervalo interjornada (entre jornadas) sem que haja penalidade administrativa. A jornada 12 x 36, normalmente, é adotada em hospitais e, principalmente, na área de enfermagem.

Na avaliação da doutora em Saúde Pública e professora universitária Frida Marina Fischer, que tem longa experiência em pesquisa e ensino na área do trabalho em turnos e noturno, o referido artigo da MP é um retrocesso e prejudicial aos profissionais, à qualidade dos serviços prestados nos estabelecimentos de saúde, sejam públicos ou privados, e, consequentemente, aos pacientes. “Trabalhar 12 horas, que já é uma jornada prolongada, em local insalubre como um hospital já é algo muito difícil, pois exige atenção constante nos cuidados com os pacientes e no registro de todas atividades. Numa situação em que há muita gente necessitando de cuidados, é preciso que os trabalhadores estejam bem-dispostos e alertas. Como é possível a pessoa se manter alerta, disposta e sem ficar doente trabalhando em uma jornada acima de 12 horas, muito prolongada?”, questiona.

Conforme Frida, jornadas muito prolongadas só podem ocorrer ocasionalmente, em condições muito especiais, com garantia de pausas intrajornadas (durante a jornada).

“E QUANDO EU FALO PAUSAS, NÃO É SIMPLESMENTE A PESSOA PARAR DE TRABALHAR, MAS, SIM, PODER DESCANSAR NA HORIZONTAL, NUMA CAMA, DORMIR, PARA PODER CONTINUAR EVENTUALMENTE NO MESMO LOCAL FAZENDO UM PLANTÃO DE ATÉ 24 HORAS”.

Caso contrário, complementa, os trabalhadores estarão exaustos, aumentando o risco de cometerem erros nos procedimentos. Complementa que há várias publicações científicas que mostram que o risco de acidentes de trabalho é maior à medida que a jornada de trabalho continua. “Isso é péssimo tanto para os profissionais que cuidam dos pacientes como para os próprios pacientes”, ressalta.

PARAMENTAÇÃO

No caso da Covid-19, exemplifica, profissionais fatigados têm inclusive maiores possibilidades de se contaminarem com o novo coronavírus. “Fora o fato de que eles têm que usar toda uma paramentação que é desconfortável, tanto para aqueles que usam apenas a máscara, mas, principalmente, para aqueles que precisam ficar completamente paramentados, com touca, avental, luvas, máscara, face shield, óculos, etc. Imagina a pessoa usando isso 24 horas”, ilustra.

Frida reforça que considera contraindicadas as determinações do Artigo 27 da MP 1.046. “Os cuidados com pacientes, sejam eles pacientes de Covid-19 ou outros pacientes, merecem muita atenção. E não é possível manter a atenção, manter-se alerta, quando a pessoa trabalha longas jornadas, tanto de dia como à noite, mas, principalmente, à noite, sem que haja descanso apropriado”, conclui.

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